Gonçalo Duarte: obra plástica
Comissários Perfecto E. Cuadrado e António Gonçalves
São conhecidos os portos principais da aventura pessoal e poética de Gonçalo Duarte (Lisboa, 1935 – Paris, 1986) e os pormenores mais anedóticos ou visíveis dessa aventura; menos conhecidos, porém, ficaram o navio e os mares e as tragédias dessa aventura, por eles pertencerem à obscuridade impenetrável do abismo de “metal fundente” que, como dizia Cesariny, mantém-se sempre aberto entre nós e as palavras. Sabemos assim de seus começos na Escola de Belas Artes de Lisboa, e depois dos encontros com os membros do grupo do Café Gelo quando do segundo momento da intervenção surrealista em Portugal. Conhecemos a sua ida para Munique (com uma bolsa do Governo da Baviera) na companhia de René Bertholo, Lourdes Castro e Costa Pinheiro, seus companheiros depois em Paris, e os contactos com o pintor alemão Karl Ferdinand Brust. Fernando Dias, referindo-se a essa passagem por Munique, resumia assim alguns dos conflitos da própria obra do Gonçalo Duarte: “Se a proximidade com Brust o influenciava nas experiências abstractas informalistas, a estada em Munique ligava-o também a uma vertente expressionista, referência histórica das primeiras vanguardas alemãs, que experimentava em algumas obras através de uma deformação e torsão das formas conjugada com a acentuação da cor. Esta via, numa relação tanto integrada como conflituosa com a surrealista, irá marcar os desenvolvimentos da sua obra figurativa nos anos 1960 e 1970”. Um conflito entre abstraccionismo e figuração que coincide e se confunde com outros conflitos como os que se estabelecem entre surrealismo e expressionismo (se é que entre um e outro devemos falar de conflito e não de relações de continuidade e de diferentes níveis de exploração e expressão do eu), ou entre literatura e plástica, linha e cor, ou, enfim, entre o real quotidiano e o real mítico, lendário, histórico e fantástico (isto é, o real poético) – conflitos esses que a Modernidade tentou e continua a tentar resolver e superar dialecticamente. Voltando à plástica, e em palavras de Eurico Gonçalves: “Entre o suave linearismo abstractizante de Paul Klee e a violenta distorção fragmentada, cubo-expressionista de Picasso, se desenvolve a Nova-Figuração Surrealizante de Gonçalo Duarte, centrada em temas obsessivos de mitos, lendas, catástrofes e tragédias”. Esta última etapa da viagem de Gonçalo Duarte acontece depois do convívio em Paris (onde iria em 1960, com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, depois do seu regresso a Portugal em 1959) com os membros do grupo responsável pela edição da revista KWY (1958-1968), Lourdes Castro, René Bertholo, Christo, Voss, Escada, João Vieira e Costa Pinheiro, com quem colaboraria activamente e onde se inscreve o seu retorno à figuração, retomando os inícios surrealistas da época do café Gelo e manifestando uma progressiva obsessão pelos temas da história mítica nacional – a destruição da lendária Atlântida, a História Trágico-Marítima ou a tragédia de Alcácer Quibir – no que Margarida Acciaiuoli já viu o exercício e a necessidade de exorcizar “fantasmas, horrores e pesadelos de outras guerras mais íntimas e ainda não figuráveis”.
Se, como disse Fernando Dias, Gonçalo Duarte “foi o náufrago da epopeia cosmopolita do grupo KWY”, não é menos verdade que foi também o cartógrafo e o poeta épico dos nossos mais íntimos naufrágios na luta por reabilitar a realidade “real” substituindo-a por uma realidade poética para a que, como assinalava Poe, tendemos todos instintivamente e da que, como já nos foi dito pelos poetas “absolutamente modernos”, de Platão a Rimbaud ou Breton, só poderemos perceber fragmentos de relâmpagos na cada vez mais afastada de nós e cada vez menos nítida linha do horizonte.
O Centro de Estudos do Surrealismo acolhe com entusiasmo esta exposição de Gonçalo Duarte, realizada com os fundos próprios da Fundação Cupertino de Miranda provenientes das colecções do Eng.º João Meireles, Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas e, sobretudo, da colecção de Eurico Gonçalves, e onde encontramos pinturas e desenhos – a pena, aguada, grafite ou lápis de cor – presididos tematicamente por aquilo que, a partir dos próprios títulos de algumas das obras expostas, poderíamos designar de “rostos, máscaras e corpos aglomerados na paisagem” ou de imagens ou cenas do “quotidiano habitado” captado pelo “olhar selvagem” (na expressão/proposta de Breton) do autor. Continua assim o Centro de Estudos do Surrealismo o seu trabalho de preservação e divulgação das obras e dos autores que no projecto (nunca concretizado, nunca concretizável historicamente de maneira absoluta e definitiva) de revolução surrealista encontraram parcial ou totalmente um sentido para as suas vidas (e, como desejo e esperança, para as vidas de todos nós).
- Data 21 de maio a 31 de agosto de 2005